sexta-feira, 15 de maio de 2009

A Arca Russa (2002), de Aleksandr Sokurov

Título original: Russkiy Kovcheg
Ano: 2002
Duração: 96 minutos
Realizador: Aleksandr Sokurov
Fotografia: Bernd Fischer
Operador de Steadicam: Tilman Büttner
Com Sergei Dreiden, Maria Kuznetsova, Leonid Mozgovoy, David Giorgobiani, Alexander Chaban, Mikhail Piotrovsky, Lev Yeliseyev, Oleg Khmelnitsky, Alla Osipenho, Artem Strelnikov, Tamara Kurenkova, Maxim Sergeyev, Natália Nikulenko, Vladimir Baranov, Maestro Valery Gergiev e as orquestras Mariinsky Theatre Orchestra e The State Hermitage Orchestra.

O Filme

Filmado num só dia, a 23 de Dezembro de 2001, A Arca Russa ocupa um lugar ímpar na história do cinema. Num plano sequência único de 96 minutos, Sokurov percorre 33 salas do Museu Hermitage (complexo monumental que inclui o famoso Palácio de Inverno dos Romanov) e 300 anos de história russa, através da qual desfilam cerca de 1000 figurantes em trajes de época. Esta viagem pelo tempo – a que a ausência de cortes empresta uma invulgar sensação de continuidade – é guiada por duas personagens, um realizador contemporâneo e um diplomata francês do século XIX, o Marquês de Custine (referido no filme como O Estrangeiro ou O Europeu), que, sem saber como, dão por si a deambular pelas salas e corredores do Hermitage. As obras de arte com que se deparam e o diálogo que mantêm sobre o dilema da europeização russa são acompanhadas pelo desenrolar de vários acontecimentos históricos, obedecendo a um muito ténue fio cronológico.

Personagens, Acontecimentos, Referências históricas: Selecção

- 00:07:10, Czar Pedro I o Grande (1672-725) aparece a bater num general.
- 00:08:18, Custine satiriza o despotismo de Pedro I.
- 00:12:10, Czarina Catarina II a Grande (1729-96) assiste ao ensaio de uma peça de teatro.
- 00:46:50, Alusão ao Cerco de Leninegrado (1941-4).
- 00:49:30, Catarina II a correr pelos Jardins Suspensos.
- 00:54:00, Czar Nicolau I (1796-855) recebe o embaixador da Pérsia, que apresenta as desculpas do Xá Fath Ali Shah (1773/3-834) pela morte de vários diplomatas russos em Teerão, entre os quais Aleksandr Griboyedov (1795-829). A entrevista tem lugar no Sala de S. Jorge, onde em 1906 viria a reunir-se pela primeira vez a Duma, ou parlamento russo.
- 01:09:53, Czar Nicolau II (1868-918) a tomar o pequeno-almoço com a família.
- 01:11:11, Último baile no Palácio de Inverno (1913). Acerca de um outro baile, organizado dez anos antes, quando a revolução estava prestes a eclodir, o Grão-Duque Alexander Mikhailovitch escrevera: ‘(foi) o último baile espectacular da história do império... (mas) uma nova e ameaçadora Rússia espreitava já pelas grandes janelas... enquanto dançávamos, os trabalhadores entravam em greve e as nuvens vindas do Extremo Oriente corriam já pesadas sobre as nossas cabeças’ (Maylunas/Mironenko, A Lifelong Passion, 226).
- 01:24:46, Um oficial faz referência ao Restaurante Medved (Urso), então situado no edifício do Hotel Demoute, na Rua Bolshaya Konyushennaya.

Exploração do filme

- Há dois temas fortes: 1) despotismo iluminado, consubstanciado nas figuras históricas de Pedro o Grande e Catarina a Grande e enunciado através das observações críticas do Marquês de Custine; 2) antecedentes da revolução russa, de que o baile final apresenta a imagem mais marcante.

- 1) Despotismo iluminado. O ambiente palaciano que o filme retrata é um produto directo do despotismo czarista de Pedro o Grande, que governou o império com mão de ferro, abrindo-o à Europa; S. Petersburgo, e em particular o Hermitage, é uma criação de Pedro o Grande, que pretendia fazer da sua cidade ‘uma janela virada para a Europa’. O governo pessoal do czar traduziu-se na modernização material da Rússia, mas sem concessões no campo das liberdades e da evolução do corpo político no sentido do liberalismo e da representação parlamentar. O Marquês de Custine, que escreveu uma obra em quatro volumes intitulada La Russie en 1839, refere-se nestes termos à tirania exercida pelo imperador e pela aristocracia russa:

‘Que faz a nobreza russa? Adora o Imperador, e faz-se cúmplice dos abusos do poder soberano para também ela continuar a oprimir o povo, que fustigará enquanto o deus que ela serve mantiver o chicote nas suas mãos (esse deus, note-se, que ela própria criou). Terá sido este, afinal, o papel que lhe reservou a Providência na economia deste vasto Império? A nobreza ocupa postos de honra? Que fez para os merecer? O poder exorbitante e sempre crescente do mestre é a justa punição pela fraqueza dos grandes. Na história da Rússia, ninguém, a não ser o Imperador, fez o que lhe cumpria; a nobreza, o clero, todos as classes da sociedade falharam perante elas mesmas. Um povo oprimido sempre mereceu as suas penas; a tirania é obra das nações. Ou o mundo civilizado atravessará de novo outros 50 anos sob o jugo dos bárbaros, ou a Rússia conhecerá uma revolução ainda mais terrível do que aquela, a Ocidente, cujos efeitos ainda hoje se fazem sentir.’ (Astolphe, Marquis de Custine, La Russie en 1839 (Paris, 1843), p. 18; os quatro volumes estão disponíveis online em http://www.gutenberg.org/browse/authors/c#a31554).

Seria interessante explorar na aula os testemunhos do Marquês de Custine, relacionando as suas digressões no filme com este ou outro excerto da sua obra.

- 2) Antecedentes da revolução russa. O despotismo czarista está na base da revolução russa como uma das suas causas mais profundas. Esta ligação fica bem explícita no filme e pode ser explorada, uma vez mais, através da figura do Marquês de Custine. O baile final, a saída dos convidados e a recusa de Custine em seguir com a multidão, deixando-se ficar para trás, sugerem um corte, o fim de alguma coisa e o princípio de outra. O que, de facto, sucedeu: o baile realizou-se em 1913, quando a Rússia vivia sob uma débil monarquia constitucional; a participação russa na Primeira Guerra Mundial, pouco depois, aceleraria a degradação da monarquia e precipitaria o fim dos Romanov, com o eclodir da revolução de 1917 e a instauração do regime soviético. É eloquente a imagem que mostra o Salão Nicolau convertido em hospital militar, apenas dois anos após o baile.

Para saber mais

- Crítica ao filme, da autoria da Dra. Birgit Beumers, professora na Universidade de Bristol e directora da revista online sobre cinema russo contemporâneo KinoKultura e da revista Studies in Soviet and Russian Cinema: http://www.kinokultura.com/reviews/Rark.html.
- Enciclopédia de S. Petersburgo: http://www.encspb.ru/en/index.php.
- Página Web oficial de Aleksandr Sokurov: http://www.sokurov.spb.ru/index.html.

2 comentários:

  1. Caríssimos
    Foi com enorme surpresa que vos ouvi, no início da segunda sessão, quase por unanimidade, falar da revolução russa de 1917 e da evolução política que se lhe seguiu como um dos temas mais difíceis de leccionar. E mais surpreendido fiquei quando praticamente todas e todos acrescentaram que os temas políticos, em geral, eram áridos, e que os alunos actualmente tinham dificuldade em perceber bem as simples e clássicas distinções "esquerda" e "direita".

    A nossa proposta de hoje, a "Arca Russa", foi clramente um caminho exigente, que requer muito 'trabalho de casa' (como o que o André Vitória fez). Creio que todos concordaremos que é uma experiência de cinema quase única.
    Caminhos mais clássicos:
    1. Os dois filmes do Sergei Eisenstein: o "Couraçado Potemkine", um marco na história do cinema, um filme a preto e branco, muito datado e 'mudo' (isto é, com banda sonora, excelente, mas em que as 'falas' aparecem por escrito, porque não se gravava a voz nem os sons de fundo). Não é um filme fácil; pode dar para os mais velhos, sempre com um enquadramento cuidadoso; e o "Outubro", um pouco mais documental e menos documental. Há excertos dos dois no You Tube, para dar uma ideia do tipo de imagem e de ritmo.
    2. Para os nossos alunos, o filme mais útil e mais eficaz é sem dúvida o "Reds", de 1981, realizado pelo Warren Beatty. Baseado num livro clássico do jornalista americano John Reed, "Dez dias que abalaram o mundo" (leitura que, aliás, podemos sugerir aos mais velhos e aos mais inteterssados, como complemento para o filme), o filme teve tr~es óscares, embora estivesse nomeado para quase todas as categorias, e é geralmente considerado como um dos 10 indiscutíveis na lista dos melhores filmes épicos de sempre. O Warren Beatty contracena com a Diane Keaton. Pelo meio, aparecem, de fugida, outras caras conhecidas, como o Jack Nicholson ou o Gene Hackman.
    Como recriação dos acontecimentos e dos ambientes, e para o nosso 'público-alvo', é sem dúvida o filme a utilizar.
    Não tem praticamente anacronismos ou erros históricos (e os que tem são muito divertidos e de pormenor).
    Mas atenção: o filme demora mais de três horas. Por isso, na sla de aula só podemos passar excertos de cinco a sete minutos (há vários possíveis e muito bons). Se esses excertos fizerem sucesso, em actividade extra-aula ou no tal "Clube de Cinema" podemos arriscar o filme inteiro. Os miúdos gostam; vão por mim.

    Outra coisa: para os séculos XVIII (final) ao início do século XXI, entre a numerosa bibliografia, sugerimos um historiador muito inteligente, que escreve bem e 'comprometido', o Eric Hobsbawm.
    Tem vários livros traduzidos que nos podem ajudar a leccionar matérias.
    Neste blog disponibilizaremos esses títulos a partir do dia 16 de Maio.
    Luís Miguel Duarte

    ResponderEliminar
  2. Ainda continuo a digerir o filme, “ A Arca Russa “ de Aleksandr Sokurov e a pensar possibilidades da sua exploração, na sala de aula. Apesar de ser um filme difícil para os alunos, acho que o poderão ver. Entram num museu, que já foi um Palácio, aprendem a olhar espaços, objectos e obras de arte que conviveram, ao longo do séc. XVIII, XIX e XX, com a família real czarista. Não podemos esquecer que há alunos que só visitam museus porque a escola lhes proporciona essa actividade. E é preciso saber lá entrar! Podem aprender a observar uma tela e a encontrar singularidades na pintura de Van Dyck, Rubens, El Greco ou Rembrandt (tal como acontecia no filme, à senhora que partilhava um segredo com um quadro). Já o foi referido, mas há comentários proferidos pelo Marquês Custine que são muito ricos e que genuinamente, servem propósitos histórico temporais ou espaciais. De alguns que anotei, cito dois: -“As pessoas eternas que sobrevivem para sempre”,(quando o Marquês deambula pelas salas do Palácio) e outro – “A Monarquia não é terna”. Este, particularmente, cruza com o excerto, que o Doutor André Vitória traduziu do livro do Astolphe, Marquis de Custine, La Russie en 1839.
    O argumento de mostrar o filme e pará-lo para explicar as circunstâncias dos acontecimentos é bem-vindo. Penso que facilitará aos alunos, a compreensão de momentos/figuras, das diferentes épocas que o Palácio viveu. É um filme magnífico. Foi uma excelente escolha! Cabe a nós aproveitá-lo da melhor forma.

    ResponderEliminar