quinta-feira, 21 de maio de 2009

O Pesadelo de Darwin - análise de Raquel Patriarca

Um Filme Documental Acerca de Homens e Peixes


O Pesadelo de Darwin de Hubert Sauper aparece definido, na primeira linha de pesquisa no Google, como “a documentary film about humans and fish”. Alguém desavisado que leia esta legenda, facilmente entenderá que se trata de um documentário sobre os atentados ambientais que destroem o planeta e que, em última análise, serão responsáveis pelo desaparecimento do que resta da humanidade. Aqueles desavisados que virem o filme, facilmente entenderão que se trata de um documentário sobre as atrocidades que destroem o planeta e que, a muito curto prazo, serão responsáveis pelo desaparecimento do que resta de humanidade dentro de cada um de nós.

A minha primeira reacção foi de deixar passar o tempo, tentar digerir o que vi e só depois analisar e escrever. Cinco dias depois cheguei à conclusão que não vou conseguir digerir nada. Este é, provavelmente, um dos sinais mais seguros de que o filme é muitíssimo bom e que toda a gente o devia ver, pelo menos uma vez. O problema é que qualquer reflexão que eu possa fazer é, à partida, tolhida pelo desconforto, o desalento e a revolta. Por outro lado, um filme tão brutalmente objectivo e esclarecedor não deixa grande margem para interpretação.

Vou apenas enunciar, o mais telegraficamente possível, três aspectos que me parecem dignos de nota: o primeiro toca questões formais; o segundo toca questões de conteúdo; o terceiro não sei dizer que questões toca.
Primeiro: O filme é bem conseguido por ser um documentário sem comentários. A esmagadora maioria dos filmes ou séries ditos documentais que vemos hoje estão carregados de comentários, relatos e explicações que, as mais das vezes, servem um de três objectivos: transformar o documentário em algo altamente empolgante e cheio de suspense; encaminhar a narração dos factos relatados segundo uma interpretação pré-concebida; fazer do documentarista o herói explorador do desconhecido ou reparador de injustiças. Este documentário é extremamente poupado nas informações que oferece em paralelo com o filme, e os poucos elementos que dá são puramente factuais: o nome e a profissão da pessoa que aparece a dar o seu testemunho; a data de um acontecimento específico ou a identificação de um determinado local.
Segundo: É incrível e abismal a diferença entre o discurso dos tanzanianos e o discurso dos outros – os russos, por exemplo. Excepção feita ao pastor – que deixa um testemunho por demais familiar –, qualquer criança de rua ou desempregado de esquina é capaz de fazer uma análise apurada da economia mundial, uma explicação integrada e estratégica do papel do continente africano na dinâmica geopolítica global e articular uma opinião informada sobre aquilo que lhe é perguntado. Pode não ter razão no que diz – isso não está aqui em causa – o que é de reter é a clareza, abertura e objectividade com que cada um partilha aquilo que observa, que sabe e pensa. De si próprio, dos outros, da morte, da vida, da doença, da religião, da guerra, do rio, do peixe, do banco mundial, de tudo. Os outros – os não nativos de países de terceiro mundo – são ridiculamente evasivos, comprometidamente neutros e mentirosamente ignorantes.
Terceiro: O Pesadelo de Darwin, como metáfora para a ‘desevolução’ da raça humana, é um título extraordinariamente bem escolhido para um filme que bem pode ser o exemplo mais acabado da ideia que define a realidade como incomensuravelmente pior que qualquer espécie de ficção.

Noutra das pesquisas que fiz no Google à procura de informação sobre a Tanzânia, encontrei um site turístico decorado com fotografias lindíssimas e no fundo, como um slogan publicitário, pode ler-se a frase: “the authentic Africa”… parece-me agora um conceito aterrador.


Raquel
vinte.maio.doismilenove

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