segunda-feira, 18 de maio de 2009

Arca Russa - análise de Raquel Patriarca

Trezentos Anos de História em Noventa e Seis Minutos


A Arca Russa de Aleksandr Sokurov passou a fazer parte dos filmes mais notáveis que vi, e isto é válido tanto no que toca aos aspectos formais, como às questões de conteúdo.

Os desafios técnicos do projecto em si são, logo à partida, factores determinantes. A enormidade do elenco, a solenidade do cenário, a presença de inúmeras obras de arte do museu e a introdução das orquestras e do teatro, a beleza do guarda-roupa, da música, da dança, o acaso das conversas não acabadas, o entreabrir de portas que é o espreitar o passado que não se compreende na totalidade, tudo magistralmente coordenado numa coreografia perfeita, transporta-nos no tempo e no espaço e produz, num só fôlego de hora e meia, uma viagem e uma experiência únicas.

Em relação ao tema e ao conteúdo não vou refazer a análise e problematização apresentadas pelo André Vitória – até porque não saberia como – mas gostava, ainda assim, de partilhar um ou dois pontos que me têm provocado algumas sinapses…

Aquilo que mais me fascinou foi a estratégia escolhida pelo realizador para contar a sua história e provocar o efeito – muito bem conseguido, diga-se – de nos fazer reflectir sobre questões do passado que são actuais no presente.
Quanto mais penso nisso, mais brilhante me parece a ideia de colocar um homem de hoje, com o conhecimento e horizonte históricos que temos – hoje – em diálogo com um homem do passado, que assistiu, participou e escreveu sobre esse passado, ambos envolvidos numa tentativa de orientação mútua por entre os meandros da passagem do tempo, com escalas em vários momentos – uns puramente circunstanciais, outros de manifesta importância histórica.

É como se fosse uma forma relativamente simples – mas não simplista – de colocar questões muito complexas; como a identidade cultural da Rússia ou as razões e circunstâncias que possam ter determinado o seu percurso histórico dos últimos séculos. E não é só o colocar das questões é o colocá-las tanto pelo homem de então como pelo homem actual.

O Marquês de Custine, muito participante e opinativo, assiste a acontecimentos próprios do seu tempo que analisa de um ponto de vista externo, porque não é russo mas ‘estrangeiro’ ou ‘europeu’ e acaba por passar de uma postura crítica da sociedade russa para uma posição de identificação cúmplice e admiração genuína. Ele conhece aquilo a que podemos chamar de antecedentes da Revolução Russa.
O Realizador do séc. XXI, que interage apenas com o Marquês, vê tudo com a estranheza e incompreensão próprias de quem está a ver um mundo diferente do seu, é – ao contrário do anterior – um russo e portanto tudo o aquilo a que assiste é, também, o seu passado, a sua herança histórica, independentemente da forma como se identifica com ela ou não. Coloca muitas questões, ajuda a esclarecer outras e assume a posição de quem sabe o que se segue à queda do Império e sobretudo o de quem conhece as consequências da Revolução Russa.

Os dois observadores, que nada têm em comum e que apresentam perspectivas diferentes perante tudo aquilo que vêm ao longo do filme são, de alguma forma, complementares nos pontos de vista e, mais importante ainda, sobrepostos nas dúvidas acerca do futuro da Rússia, que aparecem colocadas de uma maneira mais ou menos metafórica no final, e que o realizador parece relançar hoje.

Penso que esta fórmula de ‘ensinar’ a história através de um filme, sem a reduzir a uma visão linear de interpretação única, sem levantar problemas ou dúvidas, é cognitivamente mais estimulante e intelectualmente mais honesta que a esmagadora maioria dos filmes que seriam, para mim, escolhas mais evidentes. Finamente considero que tratar (ver, discutir, analisar, explorar, etc.) filmes considerados mais ‘difíceis’ ou problemáticos – e ainda que depois, em ambiente de aula com alunos mais novos, se opte por outras soluções – considero, dizia eu, que esta é a melhor estratégia para nos tornar aptos a fazer esse tratamento, sozinhos e sobre qualquer tipo e espécie de filme.


Raquel Patriarca
17.maio.2009

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